domingo, 27 de maio de 2007

Não soube do mundo



Era tão pequeno que ninguém o via.
Dormia sereno enquanto crescia.
Sem falar, pedia - porque era semente - ver a luz do dia como toda a gente.
Não tinha usurpado a sua morada.
Não tinha pecado.
Não fizera nada.
Foi sacrificado enquanto dormia, esterilizado com toda a maestria.
Antes que a tivesse, taparam-lhe a boca - tratado, parece, qual bicho na toca.
Não soltou vagido.
Não teve amanhã.
Não ouviu "Querido"
Não disse "Mamã"...
Não sentiu um beijo.
Nunca andou ao colo.
Nunca teve o ensejo de pisar o solo, pezito descalço, andar hesitante, sorrindo no encalço do abraço distante.
Nunca foi à escola, de sacola ao ombro,nem olhou estrelas com olhos de assombro.
Crianças iguais à que ele seria,não brincou com elas nem soube que havia. Não roubou maçãs, não ouviu os grilos, não apanhou rãs nos charcos tranqüilos.
Nunca teve um cão, vadio que fosse, a lamber-lhe a mão à espera do doce.
Não soube que há rios e ventos e espaços.
E invernos e estios.
E mares e sargaços.
E flores e poentes.
E peixes e feras - as hoje viventes e as de antigas eras.
Não soube do mundo.
Não viu a magia.
Num breve segundo, foi neutralizado com toda a maestria.
Com as alvas batas, máscaras de entrudo, técnicas exatas, mãos de especialistas negaram-lhe tudo ( o destino inteiro...) - porque os abortistas nasceram primeiro.

(Renato de Azevedo)

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