"Tendo-se aproximado daquele «um homem» meio morto, sem nenhum poder nem dizer, o samaritano sentiu-se interpelado por um mandamento fortíssimo, que soa: «cuida de mim, salva-me!» Estava ali «um homem» que se entregava compltamente àquele samaritano, deixando a sua vida toda nas suas mãos. Exactamente como sucede quando eu tropeço no meu caminho ou à minha porta com um ser humano entre a vida e a morte. Não faz nada, não diz nada, não levanta a voz, não reivindica nada. E, todavia, eu oiço um mandamento fortíssimo, não condicional [= «se quiseres, podes salvar-me»], mas incondicional [ = «tu deves salvar-me!»], que me obriga a tomar uma decisão indeclinável.
O que se passa na verdade, é que aquele ser humano que jaz à minha porta se entrega completamente a mim, isto é, liberta-me do meu eu espontâneo e determinístico, e institui-me como ser responsável na verdadeira acepção da palavra, para que eu me possa entregar livremente a ele. Vendo bem, a minha resposta positiva àquele «um homem» meio morto e «des-valido» não se inscreve no horizonte da animalidade, da necessidade e da espontaneidade, pois não há nele nenhum «valor» que me seduza, que satisfaça os meus desejos, realize os meus projectos. Mas é verdade que eu oiço um mandamento, o maior dos mandamentos, que não provém da ponta de uma arma ou de qualquer outra coacção exterior. Provém daquele homem meio morto, que, na sua radical pobreza e impotência, me aparece como um verdadeiro soberano, com muito mais poder do que qualquer Hitler ou Saddam Hussein. A estes eu posso obedecer só enquanto sou obrigado, porque só têm o poder de me subjugar. Não têm o poder de me dar a liberdade, de me re-criar. Aquele, o homem meio morto, é que é o verdadeiro soberano, pois entregando-se a mim sem arma nenhuma, ordenou que eu me entregasse livremente a ele, concedendo-me aí a liberdade radical e instintuindo-me como sujeito de responsabilidade indeclinável por ele."
Do livro: "Como uma Dádiva" de António Couto.
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